Brasil, uma nação de heróis esquecidos: sociedade que desvirtua sua própria cultura com a marginalização dos negros através do desvirtuamento dos seus méritos

Brazil, a Nation of Forgotten Heroes: A Society That Distorts Its Own Culture with The Marginalization of Blacks Through the Devaluation of Their Merits

 

 

Sandra Siqueira Santos

Universidad San Carlos

Asunción – Paraguay

[email protected]

 

Artículo recibido: mayo de 2022

Aceptado para publicación: junio de 2022

Conflictos de interés: Ninguno que declarar.

 

 

Resumo  

Este estudo aborda a contribuição dada pelos escravos africanos na formação dos costumes, hábitos alimentares, culinária, religiosidade, musicalidade e cultura dos brasileiros e como esse legado afeta a formação da identidade e do nacionalismo. Pela natureza da investigação utilizamos a metodologia exploratória do tipo descritivo, transversal, à revisão da literatura disponível em livros, artigos científicos e consultas a bases de dados historiográficos que tratam de temas como a construção da nacionalidade, heróis nacionais esquecidos, participação do escravo negro em conflitos, revoltas, guerras internas e internacionais que marcaram a história do país. O papel da língua, hábitos culturais e musicalidade na formação da identidade é uma realidade complexa, apesar do fato que as pessoas não apenas se comunicam, mas interpretam sua própria consciência e dos grupos sociais. Além disso, em um contexto multiétnico a percepção da identidade nacional transcende a visão da cultura preconceituosa e racista herdada do europeu colonizador. Os resultados sugerem fortemente que o brasileiro não foi educado como cidadão de uma nação multicultural e pluriétnica, que necessita concentrar esforços para ampliar o olhar para além do negro escravo e reconhecer o valor daqueles afrodescendentes. Há dezenas de personalidades, passagens históricas e obras relacionadas à cultura afrodescendente que, se conhecidas, mudarão a perspectiva que temos sobre o povo brasileiro e que foram construídas com explícita parcialidade e má fé pela historiografia oficial.

Palabras clave: racismo, escravo africano, heróis esquecidos, identidade, nacionalismo

Abstract

This study addresses the contribution of African slaves in the formation of the customs, eating habits, culinary, religiosity, musicality and culture of Brazilians and how this legacy affects the formation of identity and nationalism. Due to the nature of the research, we use exploratory methodology of a descriptive, transversal nature, to review the literature available in books, scientific articles and queries to historiographical databases that deal with topics such as the construction of nationality, forgotten national heroes, participation of the black slave in conflicts, revolts, internal and international wars that marked the history of the country. The role of language, cultural habits, and musicality in the formation of identity is a complex reality, despite the fact that people not only communicate, but interpret their own conscience and social groups. In addition, in a multiethnic context, the perception of national identity transcends the vision of the preconceived and racist culture inherited from the European colonizer. The results strongly suggest that the Brazilian was not educated as a citizen of a multicultural and pluriethnic nation, which needs to concentrate efforts to broaden the view beyond the black slave and recognize the value of those of African descent. There are dozens of personalities, historical passages and works related to Afro-descendant culture that, if they are known, will change the perspective we have on the Brazilian people and that were constructed with explicit partiality and bad faith by official historiography.

Keywords: racism, African slave, forgotten heroes, identity, nationalism

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Cómo citar: Siqueira Santos, S. (2022). Brasil, uma nação de heróis esquecidos: sociedade que desvirtua sua própria cultura com a marginalização dos negros através do desvirtuamento dos seus méritos. RECIDE, 3, 49 – 70. https:// www.utic.edu.py/revista.recide/index.php/revistas/article/view/10

 

Introduçao

O esquecimento de personagens que foram importantes para a construção da história e cidadania do povo brasileiro é uma realidade incontestável. Este artigo tendo como pressuposto os estudos sobre o ensino de história e a construção da memória nacional levanta algumas questões relativas à presença dos ícones da história nacional como a figura de Tiradentes, considerado por muitos historiadores como um herói nacional presente na memória coletiva da nação e outros.

Não se trata da identificação de um conceito de herói que está associada aos feitos e acontecimentos tais como se enunciam na história positivista; a maioria deles homens de cor branca e ligados à classe social dominante no país; heróis consagrados nacionalmente cujos nomes estão ligados às datas comemorativas nas escolas, nomes estes, repetidos por gerações seguidas de alunos.

O conceito de herói representado similarmente em vários dicionários da língua portuguesa como a ideia de uma pessoa que possui atributos extraordinários e diferentes dos demais indivíduos pode ter passado por profundas transformações e ter sido ressignificado em termos conceituais. Nos tempos atuais já não se restringe a Homem notável por suas realizações ou sua bravura; individuo que suporta sofrimento ou que arrisca sua vida em benefício de outrem; figura central de um acontecimento ou período; personagem principal de uma obra de literatura ou cinematográfica; dramaturgia; protagonista de uma obra literária, homem notável por seu valor ou pelos feitos guerreiros. Trata-se de uma visão que é, ou está a caminho de ser reconceituada, ressignificada.

Já não se faz mais eco essa descrição como sendo um sujeito especial, pelos seus efeitos e atos de bravura, onde geralmente agem em função do bem contra o mal, protegendo pessoas inocentes e frágeis supostamente ameaçadas por algo ou alguém ruim como os chamados vilões. Na circunscrição da historiografia escolar brasileira, nomes como Tiradentes (1746-1792), José Bonifácio de Andrade e Silva (1763-1838) e D. Pedro I (1798-1838) entre tantos outros que adornaram os livros de história fazem parte dessa galeria de heróis que um dia foi enaltecido pelas gerações de alunos em fase de escolarização que não passariam incólumes por uma grade curricular eivada e cercada de heróis, marcada pela necessidade da própria história e da historiografia de não esquecer-se de registrar os grandes feitos.

As definições criadas em circunstâncias históricas específicas carregam o peso do cenário espaço-temporal e cultural, as definições de heroísmo estão inexoravelmente associadas à cultura e limitadas ao tempo. “Toda cultura, portanto toda sociedade e mesmo todos os níveis de uma sociedade complexa, possui o seu imaginário” (LE GOFF, 2009:11). As bravuras e nomes dos heróis nacionais foram postos ao público leitor para serem repetidas e decoradas. Elas foram elaboradas com um fim que já não se liga aos fins das novas gerações que tem as especificidades do tempo atual com sujeitos históricos também específicos.

Existem diferentes abordagens de nacionalismos e de conceitos de nação, sendo que para uma população ser definida como nação, há uma série de elementos constitutivos que precisam ser bem estabelecidos, como: seus ancestrais fundadores, uma história que estabeleça a continuidade da nação, uma língua, monumentos culturais e históricos, heróis nacionais, lugares de memória, paisagem típica, folclore, modo de vestir, gastronomia, entre outros (THIESSE, 2001, p.08).

Pensar nesses elementos é importante justamente para se entender os processos de construção das identidades nacionais, pois é nessas características, como a língua, a cultura, o folclore, que os indivíduos de cada nação compõem a sua história. Tendo em vista esses elementos imprescindíveis na construção das nações e das identidades nacionais, e que as nações e os nacionalismos são concebidos na modernidade, se irá debater como ocorrem as construções das identidades nacionais e dos nacionalismos.

Nele, o autor afirma que nação é uma comunidade política imaginada, sendo limitada e ao mesmo tempo soberana. “Ela é imaginada porque mesmo os membros das mais minúsculas das nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem da comunhão entre eles” (ANDERSON, 2008, p.32).

A nação, diferentemente de um agrupamento da população definido pela sujeição a um mesmo monarca, coloca-se como independente da história dinástica e militar: ela preexiste e sobrevive a seu príncipe. O que constitui a nação é a transmissão, através das gerações, de uma herança coletiva e inalienável. A criação das identidades nacionais consistirá em inventariar este patrimônio comum, isto é, de fato, em inventá-lo (Thiesse, 2001, p. 08).

A transmissão de uma herança coletiva, através das gerações, ou seja, o que torna a nação a ser designada como tal é um conjunto de elementos que passa por gerações e ganha um caráter próprio. Essa herança coletiva é composta, segundo Anne-Marie, de uma lista de elementos identitários composta por ancestrais fundadores, uma história que estabeleça a continuidade da nação através da história, uma galeria de heróis, uma língua, monumentos culturais e históricos, lugares de memória, paisagem típica, folclore, e outros elementos como modo de vestir, gastronomia, dentre outros.

O povo “é um museu vivo dos grandes ancestrais, depositário dos vestígios de sua cultura original” (Thiesse, 2001, p.09).

Metodologia

A metodologia adotada neste artigo é exploratória, classificando-se como uma pesquisa do tipo descritivo, transversal. O trabalho foi estruturado em levantamento bibliográfico com a utilização de livros, artigos científicos e consultas a bases de dados importantes no contexto historiográfico a fim de buscar informações relevantes que demonstram o esquecimento da importante contribuição que milhões de africanos desempenharam na formação e delineamento da identidade cultural afro-brasileira (Marconi; Lakatos, 2012).

Para sua realização levou-se a efeito revisão da literatura científica disponível por subsídios teóricos que ajudassem a fundamentar o estudo proposto. Desse modo, sua abordagem é de natureza qualitativa, sabendo-se esse tipo de abordagem comporta uma multiplicidade de outras abordagens, constituindo-se em um movimento de saberes, de práticas e de políticas articuladas para produção de conhecimento, sob novos paradigmas (Minayo, 2013).

Como critério de seleção das fontes da pesquisa convencionou-se que as publicações fossem livros, artigos científicos e demais publicações que tratassem de temas como a construção da nacionalidade, heróis nacionais esquecidos e a contribuição dos povos africanos na construção da nossa pátria. Como critério de exclusão convencionou-se que não seriam utilizadas aquelas fontes de pesquisa que não tivessem os descritores acima citados. A busca se deu entre os meses de abril e maio de 2019. A análise das publicações ocorreu a partir do conteúdo dos dados coletados por meio da leitura minuciosa de cada literatura selecionada e observada a sua adequação ao tema, sua relevância, originalidade e profundidade. Esta análise de conteúdo se constitui em uma espécie de metodologia de pesquisa capaz de descrever e interpretar o conteúdo de toda classe de documentos e textos (Bardin, 2012).

Resultados

Construção das identidades nacionais no Brasil: heróis, mitos e regionalismos

A questão das identidades nacionais, de suas construções e desenvolvimentos, passam por uma série de elementos constitutivos, sendo alguns recorrentes e outros particulares de cada nação. Algo que costuma ocorrer em muitos casos é a criação de mitos e heróis, que como diz Carvalho (2003), requer uma grande dose de “esquecimento” e de “erros históricos”.

Para Carvalho (2003), “os mitos nacionais, especialmente os mitos de origem, e os heróis nacionais são alguns dos instrumentos mais poderosos para a construção das identidades nacionais”. Afirma que os heróis nacionais servem de imagem e de modelo à nação, e que este processo de construção de uma memória nacional, de mitos e de heróis ajuda as nações a organizar o passado, tornar o presente inteligível e encarar o futuro.

O Brasil tem poucos heróis políticos nacionais, sendo que as figuras públicas, para as quais foram construídos monumentos e estátuas, são de pouco significado para os administradores e a população. O fato de não haver nenhum fundador da nação brasileira no imaginário popular, na visão Carvalho (2003), deve-se a independência ter ocorrido através de negociações e não conflitos violentos, como em outros países latino-americanos.

Segundo Carvalho (2003) D. Pedro I, foi o primeiro candidato a herói nacional, mas sua candidatura não vingou devido a seu comportamento despótico após a independência, pela oposição republicana e estar mais preocupado com o funcionamento do sistema político do país.

Ainda de acordo com Carvalho (2003) o único nome que foi consenso entre a maioria e que se aproxima do status de herói nacional brasileiro é o de Tiradentes, um líder que apresentava tendências religiosas e que liderou uma rebelião antimonarquista foi visto como adequado para ocupar este espaço até então vago. Para isso, Tiradentes foi transformado na figura de um novo Cristo, com retratos de seu rosto modificados para parecer-se com o do líder cristão, com a mesma forma de entregar a própria vida por uma causa, fator que contribuiu à aceitação de Tiradentes como herói nacional pela população que o associou à Jesus.

Fatores presentes no imaginário popular tornam plausível a aceitação de líderes nacionais, como a religião, o esporte, a morte.

A dificuldade em se criarem heróis nacionais políticos pode estar ligada descrença geral nessa classe. A falta de identificação dos brasileiros com sua própria história é equiparada à falta de confiança nos líderes políticos, e mesmo pela sua clara rejeição a eles, incluindo aqueles eleitos para os mais altos cargos. A desconfiança nos políticos é um dos mais consistentes resultados nas pesquisas de opinião pública (Carvalho, 2003, p.412).

O brasileiro não cultua um sentimento de nacionalismo tão forte, se comparado a outros povos. Situações de regionalismos fortemente acentuados contribuem para esta ausência de um sentimento nacional. “O regime federativo permitiu grande desenvolvimento econômico aos estados, garantindo o desenvolvimento global e exacerbando o espírito regionalista” (Arrone, 2012, p.170).

A dificuldade em criar heróis, a descrença dos brasileiros em seus líderes políticos, e os casos de regionalismos no país são alguns dos fatores que levam a mostrar que no Brasil, a construção destas identidades ocorre de forma dificultada e tumultuada.

Os heróis, Super-heróis e mitos criados em circunstâncias históricas ou específicas carregam o peso do cenário espaço-temporal e cultural e suas definições de heroísmo estão inexoravelmente associadas à cultura e limitadas ao tempo. “Toda cultura, portanto toda sociedade e mesmo todos os níveis de uma sociedade complexa, possui o seu imaginário” (LE GOFF, 2009:11). As bravuras e nomes dos heróis nacionais foram postos ao público leitor para serem repetidas e decoradas com uma finalidade que já não se liga aos fins das novas gerações detentoras de especificidades do tempo atual com sujeitos históricos também específicos.

Para Hermes, Spigariol e Sperandio (2017) conhecer ou relembrar personagens que contribuíram para dar esperança de liberdade ou justiça resgatam sentimentos de confiança é fundamental para a formação do caráter nacional, porém muitos destes heróis, pessoas reais que representaram num determinado espaço de tempo dentro da história nacional, a única esperança de resgate da liberdade e dignidade de um povo, uma raça foram relegados ao esquecimento.

Segundo Hermes, Spigariol e Sperandio (2017) de presidente da República, advogados, escritores, jornalistas consagrados mestre jangadeiro, líderes da resistência antiescravagista a símbolo da tolerância religiosa, protagonistas na formação cultural brasileira, conhecer ou relembrar personagens como estes, muitos deles esquecidos, é dar ao negro brasileiro um papel longe do tradicional sujeito oculto e passivo na história do país, mas de figura atuante e decisiva nos rumos da nação. Não resta dúvida que uma mera burocracia como feriados municipais é incapaz de abarcar com precisão o papel desempenhado por determinadas figuras ao longo da formação histórica brasileira.

Lamentavelmente todos os heróis negros compõem um quadro de segunda categoria em livros didáticos, literatura e nos meios de comunicação. Não se dá aos mesmos o espaço necessário para a fruição de outro entendimento do período escravocrata que não seja o da história oficial. Quem foram os maleses que consolidaram uma revolta histórica na cidade de Salvador, em janeiro de 1835? Quem foi Luísa Mahin e qual o seu papel neste episódio?  Não há visibilidade aos feitos de nossa negritude histórica, em particular as de Palmares.

Os Heróis Desconhecidos da Escravidão no Brasil

A história do Brasil, assim como de outros países que sofreram com o processo de colonização exploratória, tem dívidas de gratidão pelas pessoas que protagonizaram num determinado espaço de tempo dentro da história nacional, a única esperança de resgate da liberdade e dignidade de um povo, uma raça e foram relegados ao esquecimento. Entre esses personagens, homens e mulheres, aqueles de origens indígena e africana ou com características desta etnia o esquecimento foi mais evidenciado.

De acordo com Santos (2018) os primeiros afro-brasileiros fizeram mais do que sofrer. Forjaram alianças, planejaram combates, usaram táticas de guerrilha e até implantaram modelos de governo inspirados em suas nações originais. Mas mesmo os líderes desses movimentos quase caíram no esquecimento – e não faz muito tempo que seus nomes voltaram à tona, graças a investigações profundas sobre esse passado.

Aqualtune fazia parte da nobreza do Reino do Congo, escravizada e comprada no Brasil, trazida para a Capitania de Pernambuco, vítima dos corriqueiros estupros sofridos pelas escravas fugiu para a região de Palmares, atual Alagoas que, na época, era  só um protótipo do quilombo que viria a ser. Teve três filhos: Sabina, Ganga Zona e Ganga Zumba. Esse último assumiu a liderança do Quilombo que no seu ápice, reuniu cerca de 20 mil pessoas, entre negros, caboclos e índios, sua sede era o Cerro dos Macacos, o maior dos assentamentos que formavam o conglomerado de Palmares. As demais regiões eram lideradas, em geral, por seus descendentes – entre eles, seu sobrinho Zumbi, filho de Sabina.

Zumbi, sobrinho do rei Ganga Zumba, com a morte do tio ascendeu ao trono para passar mais de 20 anos em guerra contra os portugueses, líder de uma comunidade livre e que acolhia pessoas perseguidas, como judeus, muçulmanos, mulheres acusadas de bruxaria e índios. Palmares continuava a ser um refúgio para os perseguidos. Segundo Funari (2019) “Com todas as limitações da época, constitui um exemplo de convivência que pode nos inspirar ainda hoje”, apud Marton (2019).

Dandara dos Palmares foi uma grande guerreira na luta pela liberdade do povo negro. No século XVII, conquistou espaço de liderança nas lutas palmarinas, companheira de Zumbi seguia ao seu lado sem perder o protagonismo feminino. Ela morreu em 1694 durante uma batalha para defender o Quilombo dos Macacos.

Tereza de Benguela foi uma liderança quilombola no século XIII, assumiu o comando do Quilombo do Piolho em Mato Grosso depois da morte do seu marido. Posteriormente, comandou o Quilombo do Quaritê que cresceu sob sua guarda e inclusive agregou índios bolivianos e brasileiros. Tereza foi presa pela Coroa Portuguesa e cometeu suicídio por negar a escravidão.

Em meados de 1690, chega ao Brasil  Zacimba Gaba,  vinda da nação Cabinda, hoje parte de Angola. Ela desembarcou no Espírito Santo e foi enviada para a Fazenda José Trancoso. De natureza rebelde, Zacimba teria sido exposta a uma série de castigos e violentada pelo dono da fazenda. A presença de Zacimba na Casa Grande, apesar da violência, lhe deu uma oportunidade de liberdade (ou, ao menos, de vingança). Ela passou a planejar um envenenamento com o chamado “pó de amansar sinhô”. O plano era administrar pequenas doses de veneno aos poucos, para não levantar suspeitas.

O escritor Goulart (2018), que compilou as técnicas mais usadas pelos escravos rebeldes, menciona um diagnóstico da época chamado “quebranto”: sintomas de fadiga e desânimo que se abatiam sobre senhores de escravos. Na maioria das vezes, diz o autor, o quebranto era resultado desse tipo de envenenamento de longo prazo.

O veneno escolhido por Zacimba foi provavelmente o “pó de preguiçosa”, veneno extraído de jararaca. Ele até podia ser ingerido poucas vezes sem causar mal, fato útil caso alguém desconfiasse do plano.

Quando o senhor finalmente caiu, Zacimba liderou uma fuga em grupo e fundou um quilombo às margens do Riacho Doce. Boa parte do seu tempo, no entanto, era dedicado à construção de canoas e à organização de ataques noturnos no porto próximo à aldeia de São Mateus (ES), libertando tantos negros recém-chegados quanto possível.

No Brasil, em 1880 o sistema escravagista já dava sinais de falência. As revoltas seguiam e, no Nordeste, um dos ícones desse período foi Chico da Matilde – o apelido de Francisco José do Nascimento, líder descendente de escravos que trabalhava como jangadeiro e aderiu à luta abolicionista em 1881. A Sociedade Cearense Libertadora propôs em assembleia uma greve dos jangadeiros. Qualquer comércio que necessitasse de embarque e desembarque nas praias do Ceará dependia deles – inclusive o tráfico de escravos.

Foi quando Chico da Matilde assumiu a liderança do movimento. Há relatos de um protesto que impediu que duas escravas, de 12 e 42 anos, embarcassem para serem vendidas no Sudeste. Por sua participação, Chico foi demitido – o que só serviu para oficializar sua liderança à frente da resistência popular. Ele passou a ser conhecido como Dragão do Mar. Em 1884, a escravidão no Ceará começou a cair: primeiro no município hoje batizado de Redenção, e depois na província inteira. Quatro anos antes da Lei Áurea, o Ceará já tinha abolido a escravatura em todo o seu território.

Quando a lei que proibiu a escravidão em todo o Brasil foi finalmente assinada, boa parte dos escravos, na realidade, já estava livre. E muito disso deve-se à insurgência de heróis como os que você conheceu aqui – e de tantos outros cuja contribuição permanecerá para sempre anônima. Fazer História com H maiúsculo, afinal, depende de uma boa dose de rebeldia. (Santos, 2018)

Segundo Ruy (1978) inconformado com a situação de opressão que Portugal estabelecera na Capitania da Bahia, em 1798, o povo se organizou visando a independência e o fim da escravidão. Seus líderes haviam assimilado os princípios liberais da Revolução Francesa e desejavam usar essa ideologia libertária como princípio condutor da rebelião. A essa conjuração juntaram-se artesãos, soldados, alfaiates, sapateiros, entre outros. Além da conclamação, os conspiradores preparavam-se para o movimento militar.

De acordo com Jancsó (1996) como era de se esperar, d. Fernando José de Portugal e Castro, governador geral da Bahia, imediatamente ordenou que fosse aberta uma devassa para se descobrir o (s) autor (es) de tão odiosa empresa: 

Ó vós povos (…) sereis livres para gozardes dos bens e efeitos da liberdade; Ó vós povos que viveis flagelados com o pleno poder do inimigo coroado, esse mesmo rei que vós criastes; esse mesmo rei tirano é quem se firma no trono para vos vexar, para vos roubar e para vos maltratar. Homens o tempo é chegado para a vossa ressurreição, sim, para ressuscitardes do abismo da escravidão. A liberdade consiste no estado feliz, no estado livre do abatimento; a liberdade é a doçura da vida, o descanso do homem com igual paralelo de uns para outros, a Liberdade é o repouso, a bem-aventurança do mundo. (Jansó, 1996, p. 35)

Este era o teor dos cartazes manuscritos colados nos muros na Bahia, em 1798, que marcaram a história do nosso país. O movimento político-social era liderado por pardos escravos e livres, negros escravos e negros forros. A jovem plebe rebelde visava à emancipação do Brasil.

Segundo Valim (2007) por meio de exame de comparação de letras provaram que o autor dos manuscritos era Luís Gonzaga das Virgens e Veiga, homem pardo e soldado do Primeiro Regimento de Linha de Salvador e Quarta Companhia de Granadeiros. Ainda de acordo com a autora o esboço de uma República Bahiense, abortada pelas autoridades foi uma jura que morreu sem oração na manhã de 08 de novembro de 1799, quando quatro homens livres, pobres e pardos foram enforcados e esquartejados na Praça da Piedade, em Salvador. Condenados como as cabeças da projetada revolução, os alfaiates Manuel Faustino e João de Deus do Nascimento, e os soldados Lucas Dantas do Amorim e Luís Gonzaga das Virgens e Veiga foram considerados os protagonistas de um evento histórico conhecido até os dias e hoje como Conjuração Bahiana de 1798.

Segundo Hasse e Kollinga (2006) o país experimentou a força, habilidade e perícia dos escravos africanos nas forças republicanas que enfrentaram o exército imperial, em terras meridionais do Brasil, entre os anos de 1835 a 1845, num conflito que ficou conhecido como a Guerra dos Farrapos. Os lanceiros negros, aguerrido grupamento militar era formado inicialmente por cerca de cem escravos que lutavam no lugar dos filhos de seus donos contra o Império do Brasil. Por dez anos, os Lanceiros Negros protagonizaram participações decisivas nas batalhas ao lado dos farrapos. A guerra contra as tropas imperiais, no entanto, se tornou cada vez mais inviável.

De acordo com os autores as negociações de paz avançaram, mas um dos principais impasses era justamente a situação dos Lanceiros Negros. O Império Brasileiro não aceitava a existência de homens negros em liberdade e armados, experientes em combate. O abolicionismo havia sido declarado como um ideal farroupilha e era condição exigida pelos revolucionários para que a paz fosse selada. Em novembro de 1844, conforme combinado entre os líderes militares, o general farroupilha David Canabarro e o imperial Barão de Caxias, foi por Canabarro ordenado que a tropa de Lanceiros Negros fosse desarmada e se dirigisse até o cerro de Porongos e lá montasse acampamento. A Caxias coube ordenar às tropas imperiais para que também se deslocassem até o local para combater os farroupilhas que lá estivessem. Desarmados e pegos de surpresa às 2h da madrugada, os negros farroupilhas foram dizimados pelos soldados imperiais. O massacre resultou na morte de centenas de lanceiros. 

A presença forte do homem negro não ficou circunscrita apenas à participação nas rebeliões contra a escravidão e a opressão de Portugal, de acordo com Izecksohn (2009) a invasão do desconhecido território paraguaio, em abril de 1866 pelos aliados, Brasil, Argentina e Uruguai, ocorreu de forma desarticulada e a derrota dos aliados na batalha de Curupaiti, em setembro, evidenciou a necessidade de recrutamento de novos soldados. Nesse contexto o Imperador D. Pedro II editou no dia 6 de novembro de 1866, o decreto nº 3.725, que concedia alforria aos escravos que se dispusessem a lutar na guerra contra os paraguaios. Assim, repentinamente estes homens adquiriram junto com a sua liberdade, um uniforme e a missão de defender a pátria que até então lhes negava a cidadania.

Outros Personagens Negros da História do Brasil

Não foram poucos os negros ao longo da história que se destacaram por exercer outro papel: a defesa dos direitos humanos, não apenas para seu grupo, mas para todo e qualquer negro brasileiro. Entre esses direitos, está a liberdade.

Conhecer ou relembrar personagens como estes muitos deles esquecidos, é fundamental para a formação do caráter nacional, dando ao negro brasileiro um papel longe do tradicional sujeito oculto e passivo na história do país, mas de figura atuante e decisiva nos rumos da nação.

São eles:

- Nilo Procópio Peçanha, que governou o país entre junho de 1909 e novembro de 1910. Teve infância humilde, vivida na periferia de sua cidade natal. Após completar seus estudos na capital do estado, no Colégio Pedro II, deixou brevemente o Rio de Janeiro para formar-se na Faculdade de Direito de Recife. Ao retornar, foi advogado e jornalista, militando pela abolição da escravatura e pela república. Após o golpe republicano, foi eleito deputado da Assembleia Nacional Constituinte, pelo Partido Republicano, em 1890. Foi deputado estadual pelo RJ entre 1891 e 1903.

- Machado de Assis - Joaquim Maria Machado de Assis foi um escritor brasileiro, considerado por muitos críticos, estudiosos, escritores e leitores um dos maiores senão o maior nome da literatura do Brasil.

- Ernesto Carneiro Ribeiro, médico, professor, linguista e tornado Barão de Vila Nova, graças a seu trabalho em biomedicina.

- Cruz e Sousa, Dante negro, como se tornou conhecido, um dos inúmeros autores brasileiros a utilizar seu prestígio e articulação na defesa da causa abolicionista. A vida sofrida e a situação de escravo liberto em um país ainda escravagista e racista fizeram da carreira de Cruz e Sousa um marco para desafiar os padrões da época, fato que se refletiu em sua obra.

- Carolina Maria de Jesus, escritora, neta de escravos e filha de pais analfabetos. Seu livro Quarto do Despejo: diários de uma favelada, obra que hoje acumula mais de um milhão de cópias vendidas e publicadas em mais de 14 idiomas.

- Luiz Gama, Escritor, jornalista, advogado, baiano ilustre ou ninguém menos que o maior abolicionista do Brasil. Na década de 1860 tornou-se jornalista influente, ligado aos círculos do Partido Liberal. Chegou a fundar seu próprio periódico, “O Radical Paulistano”, onde dividiu espaço com seu amigo e companheiro Rui Barbosa.

-Francisco José do Nascimento, conhecido como Chico da Matilde. Ele foi um jangadeiro de origem pobre, pardo e trabalhador do mar. É um dos maiores símbolos de resistência à escravidão no país. Em 2017 seu nome foi inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, localizado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília.

- Maria Escolástica da Conceição Nazaré, um nome que correu o mundo. Descendente de escravos nasceu no final do século XIX e é considerada a mãe de santo mais admirada do país por, ao longo de 64 anos de direção, ter tornado o terreiro de candomblé de Salvador o mais respeitado do Brasil.

Destaques na musicalidade

Jackson do Pandeiro, Jorge Aragão, Clara Nunes (Cantora de samba e estilizou as musicas de rituais afros- brasileiros para MPB), Elba Ramalho (Cantora, interprete e compositora de MPB e Forró), Elsa Soares (Cantora e interprete), Elizeth Cardoso, Noco da Portela, Carmem Costa (Cantora e compositora), Anacleto do Império (Grande conhecedor do Jongo, Lundu e Capoeira- Com mais de 600 composições catalogadas), Alcir Pires Vermelho (Pianista), Almir Guineto, Martinho da Vila, Jorge Bem Jor, Tim Maia (Cantor de estilo Soul), Kid Mangueira (Cantor e compositor de Samba), Emílio Santiago (Cantor de Map, interprete e campeão de festivais e de vendas), Roberto Silva (O principe do Samba), Dalva de Oliveira (Cantora, interprete compositora- ganhou o título de a rainha do radio), Mano Braw (Vocalista da Banda Os Racionais MC’s, Compositor de músicas que abordam temas sobre a periferia, Pixinguinha (Um dos maiores compositores  de MPB do Brasil - Conhecido nacional e internacionalmente), Maestro Francisco Braga (Um dos maiores expoente da música erudita do Brasil), Jorge Lafon (Ator, dançarino, transformista e comediante), Elsa Luciene (Atriz e cantora), Cartola, José Carlos Capinan (Cantor e compositor – dirigente da Sociedade Amigos da Cultura Afro-brasileira), Luis Melodia (Cantor e compositor – Marcou época com a música  que deu nome ao seu primeiro LP - Pérola Negra – e com sua sigularidade e expressividade musical, cantor de MPB, Samba e Soul, instrumentista: violão, piano e guitarra), Jamelão (Cantor, compositor, interprete- reconhecido como o maior interprete do compositor popular Lupicínio Rodrigues), Johnny Alf (Pianista, jazzista, cantor e compositor), Silvio Caldas (Cantor e compositor – foi um dos maiores cantores na época de ouro da MPB), Iza, Ed Mota.

Ator, Comediante e Cantor

Grande Otelo (Ator e comediante), Tony Tornado (Cantor de Rock n’rol, Compositor, Ator de Tevê, 22 Novelas, filmes e 01 minissérie, 06 programas de humor, musical, programa infanto-juvenil, festival internacional da canção cinema e teatro), Jair Rodrigues (Cantor, compositor e famoso interprete , apresentou  programa musical com Elis Regina), João Nogueira (Cantor e compositor e importante intérprete de Noel Rosa, Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Cartola, Nelson Cavaquinho), Gilberto Gil (Um dos ícones da moderna MPB- Produtor, interprete e cantor, poeta e com vasta vivencia política), Zezé Motta (Uma das maiores artistas brasileira – Atriz de filme, novelas, teatro e cantora).

Na Política

Carlos Alberto de Oliveira (Deputado Federal autor da “Lei Caó”), Benedita da Silva (A mulher negra alcançou o mais alto escalão da história da política brasileira – Senadora, Vice Governadora do Estado do Rio de Janeiro- Professora, Assistente Social), Matilde Ribeiro – Secretária Especial da Política da Promoção da Igualdade Racial), Roberto Santos (Governador nomeado da Bahia- Oficializou o Direito e Registro dos Terreiros de Candomblé e Outros Templos de Ritos Afro-brasileiros), Paulo Pain- Recebeu (06 vezes o título de um dos 50 negros mais influenciáveis internacionalmente, eleito Deputado Federal e Senador), Joaquim Barbosa (Primeiro negro nomeado como Ministro e Presidente do Supremo Tribunal Federal), João Alves Filho- Primeiro Sergipano Negro a ser eleito e reeleito  Governador e Prefeito.

Escritores

Teodoro Sampaio, Delcídio Jurandir (Romancista), Castro Alves (Poeta), MV Bill- Escritor e Cantor de Rapp), Teixeira e Souza (Escritor), Haroldo Costa (Jornalista, escritor, ativista cultural, diretor artistico, balharino, ator de teatro, etc.), Milton Santos (Baiano de origem humilde, geógrafo, escritor de vários livros, PHD, residiu na França durante muitos anos), Cruz e Souza (Poeta – um dos maiores do mundo). Dolores Duran (Uma das maiores  representantes do Samba-canção, cantora e compositora).

Abolicionistas

André Pinto Rebouças (Uma das maiores autoridades em  engenharia hidráulica do país), Vitoriano Veloso - Alfaiate de profissão e inconfidente negro -  no período na conjuração mineira foi preso,  deportado a Moçambique, lá ficando durante três anos e depois de torturado, barbaramente, nada revelou sobre os planos dos inconfidentes), Henrique Dias - Guerrilheiro pernambucano que lutou contra os holandeses - comandou tropas alcançando a vitória ao tomar o forte de Cunhaú/RN.

 

Outras Influências Negras

Walter Guimarães da Silva (Fotógrafo), Vitória Brasília (Coronel – Policial,  1ª negra Comandante da Policia  Militar Feminina de São Paulo), Daise Nunes (Primeira miss Brasil negra), Mario Gusmão (Maior ator negro da Bahia), Antonio Carlos Bernardes Gomes (O Mussum - músico, sambista, comediante, criador da banda de samba Originais do Samba e mais de 27 filmes e 20 anos de Tevê), Sebastião José de Oliveira (Primeiro cientista negro do Brasil- da Fundação Osvaldo Cruz), Ruth de Souza (Primeira atriz negra a subir no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro - Na peça Imperador Jones- cuja estreia foi para comemoração do final da segunda guerra – artista da Tevê, cinema e teatro), Camila Pitanga (Modelo, atriz de Tevê e cinema, eleita a musa de verão em 1994, com 16 anos,  e já intérprete  em  12 novelas, 02 minisséries,  seriados, programa de humor, e outros, vencedora do prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte ao viver uma prostituta, na novela Paraiso Tropical- rede globo), Milton Gonçalves (Ator renomado em novelas, filmes, minissérie), Haroldo Pereira (Jornalista, primeiro ancora negro do Jornal Nacional, rede globo).

Atletas Negros que Fizeram História no Esporte

A Influência Africana no Processo de Formação da Cultura

O racismo é um assunto que ainda não foi totalmente superado pelos brasileiros, em diversas partes do país, atitudes racistas contra parte da população afro-brasileira ainda são presenciadas.  Parte desse preconceito é oriunda do período da escravidão, no qual os negros africanos viveram subjugados pela elite portuguesa e brasileira. A presença de negros no território brasileiro contribuiu sistematicamente para a formação de uma sociedade miscigenada.

Entretanto o escravo, de origem africana, era um elemento de suma importância no campo econômico durante o período colonial, sendo considerado "as mãos e os pés dos senhores de engenho porque sem eles no Brasil não seria possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente" (Antonil, 1982, p.89). Contudo, a contribuição africana no período colonial foi muito além do campo econômico, uma vez que, os escravos souberem reviver suas culturas de origem e recriarem novas práticas culturais através do contato com outras culturas.

O intercâmbio cultural entre os negros africanos, indígenas e portugueses foram intensos, notadamente na língua, costumes, modos, comidas, forma de pensar e práticas religiosas. De acordo com Paiva (2001, p. 185) As trocas culturais e os contatos entre povos de origem muito diversa é algo que, então, fazia parte do dia-a–dia colonial desde a chegada dos portugueses. Isto, porque, era ampla a vivência cultural da população negra no Brasil colonial, refletindo amplamente na sociedade do período.

Sobre a influência africana Freire (2001, p. 343) destaca que:

Quantas "mães-pretas", amas de leite, negras cozinheiras e quitandeiras influenciaram crianças e adultos brancos (negros e mestiços também), no campo e nas áreas urbanas, com suas histórias, com suas memórias, com suas práticas religiosas, seus hábitos e seus conhecimentos técnicos? Medos, verdades, cuidados, forma de organização social e sentimentos, senso do que é certo e do que é errado, valores culturais, escolhas gastronômicas, indumentárias e linguagem, tudo isso conformou-se no contato cotidiano desenvolvido entre brancos, negros, indígenas e mestiços na Colônia.

Ainda de acordo com Freyre (2001, p. 346), a nossa herança cultural africana é visível no jeito de andar e no falar do brasileiro, pois:

Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo em que se deliciam nossos sentidos, na música, no andar, na fala, no canto de ninar menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra. Da escrava ou sinhama que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho- de- pé de uma coceira tão boa. De que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama- de- vento, a primeira sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de brinquedo. (Freyre (2001, p. 348)

Observa-se que, de acordo com a citação acima, a influência africana foi além da cozinha e da mesa, chegando até a cama, pois era comum a iniciação sexual do "senhorzinho" branco ocorrer com uma escrava. Comum também era a prática de feitiços sexuais e afrodisíacos pelos escravos, pois foi na "perícia e no preparo de feitiços sexuais e afrodisíacos que deu tanto prestigio a escravos macumbeiros juntos a senhores brancos já velhos e gastos." Freyre (2001, p. 343).

Porém o negro e o mestiço dificilmente conseguiam igualar-se ao homem branco. O "mundo da senzala" sempre esteve muito distante do "mundo da casa grande". Para alcançar pequenas regalias, fosse como escravo ou como homem livre, os descendentes de negros precisavam ocultar ou disfarçar seus traços de africanidade, já que o homem branco era apresentado como padrão de beleza e de moral. (Carneiro, 2003, p. 15).

Racismo Presente nos Livros Didáticos

O ambiente escolar é um local que exerce influência intelectual e cidadã sobre um indivíduo, afetando a formação da identidade dos alunos. Identidade a qual é definida pelos comportamentos, atitudes e costumes de um indivíduo e se modifica com a convivência entre sujeitos, ou seja, se constrói tendo o Outro como referência (Gomes, 1996). Por conseguinte, o fato de o tema da diversidade étnico-racial não ser abordado na sala de aula, acarreta na não valorização da pessoa negra pela sociedade, contribuindo para que os alunos negros percebam as suas diferenças como aspectos negativos.

Conforme Gomes (1996, p. 88) o processo de construção da identidade “[…] é um dos fatores determinantes da visão de mundo, da representação de si mesmo e do outro”. Além disso, ocorre que a identidade da criança está, continuamente, em construção, podendo ser afetada por nosso meio social, ou seja, é formada ao longo do tempo e não algo inato, existente na consciência desde o momento do nascimento. Assim, ela permanece sempre incompleta, está sempre sendo formada, numa interação entre o eu e a sociedade e modificada num diálogo contínuo com os mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos oferecem.

Segunda Silva (2002), as representações observadas no cotidiano de crianças constituem-se no seu senso comum, elaborado a partir de imagens, crenças, mitos e ideologias, vindas a formar, então, a identidade cultural. Sendo assim, o fato de, muitas vezes, os livros didáticos utilizados em sala de aula retratar o negro de uma forma estigmatizada origina danos ao aluno, que acha normal o racismo e a discriminação contra as pessoas negras, reforçando-se, então, ideias racistas dentro e fora da escola.

Silva (1995, p. 47) explica que, nos Livros Didáticos há, normalmente, uma melhor representação de pessoas brancas em relação às negras, sendo conferida àquelas uma importância maior do que aos negros. Os seja, os Livros Didáticos passam a ter papel fundamental na reprodução de ideologias, uma vez que expandem visões estereotipadas dos segmentos oprimidos da sociedade.

Devido às denúncias da presença do racismo em Livros Didáticos pelo Movimento Negro e por pesquisadores interessados em estudar o racismo brasileiro (SILVA, 1995; ROSEMBERG, 2003) já existem vários estudos realizados, entre os quais se podem citar a pesquisa de Dante Moreira Leite, intitulada “Preconceito racial e patriotismo em seis livros didáticos primários brasileiros” (ROSEMBERG, 2003). A partir desta e de outras pesquisas, pôde-se constatar que muitos Livros Didáticos veiculavam estereótipos e expressões de inferioridade natural do negro, o que prejudicava a construção da identidade dos alunos, como:

[…] a não representação de personagens negros na sociedade descrita nos livros; a representação do negro em situação inferior à do branco; o tratamento da personagem negra com postura de desprezo; a visão do negro como alguém digno de piedade; o enfoque da raça branca como sendo a mais bela e a de mais poderosa inteligência (ROSEMBERG, 2003, p. 133).

Todavia, de acordo com Rosemberg (2003, p. 136), são muitas as ilustrações que, ainda, apresentam “[…] o negro escravo, vinculando-o à passagem daquela condição à de marginal contemporâneo, pouco trabalhando a diversidade de sua condição”.

Considerando tudo isto e percebendo-se que o processo de construção da identidade se dá, também, na escola, local que representa um papel central na formação da identidade social de um indivíduo, de acordo com alguns pesquisadores (GOMES, 1996; CAVALLEIRO, 2001; SILVA, 2005), as discriminações que se dão com os estudantes negros os estigmatizam, minando as suas identidades, porque aprendemos a ser quem dizem que somos e a pensar do outro aquilo que dele imaginamos, sem ter para isso nenhum motivo real.

Entre as imagens que desvalorizam o negro, destaca uma que ilustram afrodescendentes trabalhando em cargos inferiores, como se a eles restassem, apenas, os trabalhos manuais e não se comunicassem seguindo a norma-padrão da língua portuguesa e, aos brancos, os cargos superiores. Além disso, a ilustração de uma pessoa negra trabalhando numa construção acompanha a música Construção, de Chico Buarque de Holanda, a qual traz um verso que se repete durante toda a letra, o que, assim como explica o material (2006, p. 24), contribui para a representação da monotonia da colocação dos tijolos, um a um, num trabalho repetitivo. Esse personagem não possui nome próprio e é comparado a uma máquina: “Subiu a construção como se fosse máquina”.

 Rosemberg (2003, p. 134), reporta a pesquisa na qual constatou que os afrodescendentes eram representados em um contexto invariavelmente pobre e sem nome próprio. Assim, a ilustração perpetua o estereótipo de que negro é sempre pobre e trabalha em posições de trabalhos inferiores e manuais, em comparação aos do branco. Dessa forma, esta imagem inferioriza este personagem criado pelos autores e envia mensagens negativas aos alunos, bem como pode estar mostrando uma prática de racismo por parte dos autores e da editora deste Livro Didático.

O racismo é adquirido pelos indivíduos em seu meio social, durante a formação da sua identidade, a qual está sempre em construção (HALL, 2002). Ou seja, não nascemos com nossa identidade definida, esta é formada durante nossa convivência, recebendo influências de pessoas que nos cercam.

Discussão

A construção da identidade nacional e do nacionalismo levantam discussões profundas por se tratar de um tema complexo envolvendo diferentes opiniões entre os pesquisadores. Alguns elementos necessitam de muita reflexão, como a concepção moderna das nações e dos nacionalismos, que apresentam extrema complexidade e ao mesmo tempo, um  material com muita profundidade à pesquisa historiográfica. Seus elementos, quando estudados de acordo com uma nação específica e sendo concebidos na modernidade, mostram como este assunto está presente no dia-a-dia desse povo, e exerceram e continuam exercendo influência, em suas formações e construções, e também na realidade atual.

A exposição analítica da realidade do povo de origem negra mostra que, apesar de terem contribuído para que o descendente de sua etnia, atualmente, possa andar com dignidade no tocante à liberdade, respeito e aceitação em qualquer ambiente da sociedade,  esse sacrifício é pouco foi vislumbrado. Podemos elencar varias concepções de cunho racista, de valores direcionando os conteúdos educacionais para um viés carregado de preconceito que rompem as possibilidades de destaque pautado no não reconhecimento de associar vitórias, força intelectual e glórias de representatividade social a um cidadão que fuja do estereotipo, ou seja, o cidadão branco.

O estudo mostra que o caráter individualista da sociedade atual leva o cidadão a esquivar-se da celebração do culto ao estado ou à nação, abandonando a ideia de que é producente reverenciar a um sujeito vindo de fora que possa resolver seus problemas ou realizar uma ação do grande homem que a todos salva. As pessoas no campo individual e familiar tem lutado dia após dia pela salvação da própria estrutura física e psicológica, criando com isso dimensões subjetivas de reconhecimento das forças ativas que estão próximas de suas próprias vidas, quer seja pela luta da sobrevivência individual ou coletiva do grupo familiar. As pessoas tem se distanciado cada vez mais dos tempos em que um cidadão colocava sua força física a serviço da nação ou da religião de forma que contribua para a criação de um patrimônio coletivo.

Do estudo depreende-se que o fato de o tema da diversidade étnico-racial não ser abordado na sala de aula acarreta na não valorização da pessoa negra pela sociedade, contribuindo para que os alunos negros percebam as suas diferenças como aspectos negativos. A constatação de que os afrodescendentes são representados em um contexto invariavelmente pobre e sem nome próprio perpetua o estereótipo de que negro é sempre pobre e trabalha em posições de trabalhos inferiores e manuais, em comparação aos do branco. Dessa forma, esta imagem inferioriza este personagem criado pelos autores e envia mensagens negativas aos alunos, bem como pode estar mostrando uma prática de racismo por parte dos autores e das editoras de Livros Didáticos.

Considerações Finais

Entender o que leva as pessoas a buscar no nacionalismo uma forma de suprir sua crise de identidade faz-se importante, principalmente na pós-modernidade, em que valores antes definidos hoje parecem estar em crise, como a identidade, por exemplo. Assim sendo, os processos de construção das identidades nacionais no Brasil merecem atenção especial, pela especificidade em que são baseadas. Ao contrário de outros países, em que há uma quantidade maior de heróis nacionais, e que estes são vistos, de fato, com reverência pelos seus habitantes, no caso brasileiro, há uma grande dificuldade em se criar heróis, sendo Tiradentes o único que se aproxima desta classificação.

Reverenciar a memória dos seus heróis é aceitar o seu legado de luta e desafio contra as discriminações, os preconceitos e a opressão. A história oficial marginaliza os heróis negros, mas também o próprio povo negro se esquece deles. Heróis que deram suas vidas em causas nobres, como igualdade de direitos, dignidade e liberdade, na Guerra dos Farrapos, em território brasileiro, e no maior conflito bélico da América do Sul – a Guerra do Paraguai, onde estiveram envolvidos Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.

O povo brasileiro não recebeu e ainda não recebe educação como uma nação multicultural e pluriétnica são imprescindíveis concentrar esforços para ampliar o olhar para além do negro escravo e reconhecer o valor daqueles afrodescendentes em segmentos como a literatura, a música, as artes cênicas, as artes plásticas, as ciências, a medicina, o jornalismo, a diplomacia, a guerra, a política, a religião, etc. Isto significa que o conhecimento da história real ainda precisa ser resgatado. Há dezenas de personalidades, passagens históricas e obras relacionadas à cultura afrodescendente que, se conhecidas, mudarão a perspectiva que temos sobre o povo brasileiro e que foram construídas com explícita parcialidade e má fé pela historiografia oficial.

Precisamos buscar referências, pesquisar, demandar, estudar, perceber o nosso entorno, ir além dos livros didáticos, observar e ouvir a expressão da vida e da cultura nas várias formas em que ela se apresenta em nosso meio. Repito, vivemos em uma sociedade multicultural, onde convivem inúmeras etnias e já não é mais aceito que só os conhecimentos proporcionados pela visão de mundo eurocêntrica, branca, católica e masculina estejam representados na maneira como montamos os currículos escolares. A escola é um espaço que é direito de todas as raças. Mas esse é um direito que para ser respeitado não basta a presença física de seus descendentes na escola.

 

 

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RECIDE Revista Científica del Centro de Investigación y Desarrollo

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